- Qual será o sabor de sangue na boca?
Pensou para si enquanto engolia a seco as lágrimas de humilhação que lhe dera a beber. A vontade que tinha era agarrar-se à sua carótida até não sentir mais força. Força que precisava inventar para aguentar e calar. Força de se manter erguida a força, força, força....
- Merda de força que não me larga.... para ser covarde bastava tão pouco e para ser forte é preciso tanto porquê?!
Esta cidade está de mais, tanta gente, meu Deus! Para onde vai tanta gente lá embaixo? Parecem formigas!
De repente voltou para o dia em que sentada na torre, com as pernas para o lado de fora, se irritou. Mas irritou mesmo! A cidade sempre tão cheia de gente, não havia um lugar que fosse onde tivesse um pouco de privacidade.
- Caramba, já nem para se atirar uma pessoa tem paz!
O dia estava quente para o mês de Dezembro. Lá em baixo as pessoas movimentavam-se como formigas, quando se encontravam umas com as outras lá no passeio.....
- Com uma diferença, enquanto que as formigas se encontram e trocam informação vital umas com as outras, nós os seres racionais, evitamo-nos uns aos outros. (Surpreendeu-se quando ouviu a sua própria voz).
- Olha, só me faltava esta, a falar sozinha!
De sacos nas mãos e olhos desconfiados, atrasados, estressados, envergonhados, humilhados, alienados.... corriam como se estarem fechados em casa fosse a única saída possível para um dia louco de ... correr para o trabalho, ou será do trabalho? Por momentos o seu pensamento divagou... segui com o olhar uma mãe e um filho...
- Meu Deus que saudade atroz!
Voltou à torre.
Lembrou-se do momento e ardeu-lhe o peito. Levou a mão ao peito, embrulhou dedos à volta da echarpe e apertou, juntou o punho fechado ao peito, como se na palma da mão guardasse em segredo a razão de ali estar.
O vento soprava suavemente no rosto, sentia os caracóis ligeiramente no ar, quando de pernas penduradas se preparava para ter a última conversa consigo mesma, um caracol teimoso entrou-lhe na vista. Aflita com o ardor nos olhos....
- Senhor! arde-me tudo!
Afastou o cabelo do rosto, queria olhar antes de voar.... sim voar, porque cair já não conseguia cair (mais fundo do que já caíra).
- desta... é agora...
- O que é que pensas que estás a fazer? (ouviu a voz de um homem atrás dela. Irritou-se!)
- Nem aqui?! Caramba, já nem para se atirar uma pessoa tem paz!? (refilou.)
Com raiva e desespero olhou, rodou o dorso para trás.
- Não tem nada a ver com isso. Não tem mais que fazer que vir para aqui a horas de trabalho.
- Até tenho, mas apeteceu-me fumar um cigarro. Mas ainda não me disseste o que pensas fazer, aí sentada.
Contrariada e já com mais água que vento no rosto disse:
- Estou cansada, deixe-me estar, por favor.
- Vais saltar?
- Vou. Porquê?
De queixo tenso e ar des_CONtraído, acendeu um cigarro. De cabeça ligeiramente inclinada para trás, inalou...fechou os olhos, também a ele lhe sobrava água nos olhos.
Dentro dele corriam rios de tristeza. Dentro dela escondia-se o delta... ponto de entrega de uma água à outra.
- Se esperares um pouco, e me fizeres companhia neste último cigarro, explico-te porquê. Fumas?
- Que se lixe, não me há-de matar.... (disse ironicamente.)
De olhos rasos, perguntou:
- Último cigarro?... vai deixar de fumar?! (que pergunta tão estúpida para quem está prestes a saltar, fazer!)
- Vou. Vou deixar de fumar.... salto e deixo de fumar. (Desta vez foi ele a devolver a ironia ...)
Fitaram-se olhos nos olhos.
O pensamento de cada um acelerava e corriam no corredor da consciência. Salvar ou morrer? Mas... só porque eu quero saltar, não tenho que o ajudar a saltar.... mas que merda, pensou ele... só porque eu já não aguento mais, não quer dizer que a vou dar uma ajuda para saltar também.
- Filhos da mãe dos homens, que mania de controlar e mandar e manipular. A sério que até hoje me confronto com isto? mas quem é que ele pensa que é? (gritava-lhe o pensamento. a morte chamava, tinha pressa.... como podia de repente sentir-se tão viva?!)
- Gajas... São todas iguais! metem-se na vida de um gajo e sem darmos conta, dão-nos a volta com uma pinta que até mete raiva.... (rangia os dentes para que as palavras não lhe escapassem dos lábios.)
Dois corpos, dois corações, dois seres...
- Vá lá, disse ele, fuma lá um comigo.
Estás com medo de fumar? (perguntou sarcástico e belo.)(belo)?
eu acho-o belo e o parvo quer que eu fume. Está para aqui a ...
- Eu não tenho medo! não quero é perder a força (... força....força....) de fazer o que quero!
inalou...
Há dias que já não fumava (já nem trocos para o tabaco....), sentiu um ligeiro alívio e bem estar, como se de repente tudo se limita-se aquele pequeno trave no cigarro dele.
- e Tu, (já desistindo de formalidades) que vieste cá fazer...?
- O mesmo que tu!
Sentaram-se lado a lado no chão...
Costas encostadas ao varandim...
Quando as pernas dela tocaram as dele, partilharam então o último cigarro como se fosse um pecado, e o silêncio como se fosse um segredo.
Dentro dele corriam rios de tristeza.Dentro dela escondia-se o delta... ponto de entrega de uma água à outra.
(Extraído de um conto da autora.)
Ventos Sábios - Ruth Collaço
Ruth Collaço, a autora deste texto.