O dia foi passando e eu quase me esquecia de vos contar

O dia foi passando e eu quase me esquecia de vos contar.

É que hoje ela voltou. Sim, a Voz! quem mais me vem aborrecer logo de manhã? 

Nem queiram vocês saber!... coisinha irritante!

Estava eu bem embrulhada nos lençóis quando ela me diz:

"Vá.... levanta-te, já não estás de ferias!"

Só por isso fiquei pior que estragada. Aproveitei espreguiçar-me enquanto arrastei os pés até à cozinha. Liguei a máquina de café e ela, a Voz, não parava de me tamborilar na consciência.... Conhecendo-me como me conhece, está muito corajosa! Sabendo que eu ainda não estava muito desperta (penso que ainda estaria para lá de Namec... sim, porque ela aproveita-se sempre do meu lastimável estado de sono matinal para me incutir ideias e pensamentos e planos e devaneios).

A máquina apitou, tirei um café bem quentinho... 1... 2... 3.... ai! descuidei-me! 3 colheres de açúcar! eu não acredito. É da maneira que não me canso a mexer o café, ri para mim...

Foi aí que ela, a Voz, continuou - parecia uma daquelas personagens do cinema dos anos 60 em que a mulher vem para a cozinha de robe e rolos, café numa mão e verniz a secar na outra.

"Sabes? aviso-te já que hoje nada te fará sentido (agora que me lembro, tinha ela toda a razão) Vais-te irritar com quem amas, vais idealizar os que te magoam e pior.... vais ignorar as tuas próprias necessidades."

Aí, levantei a sobrancelha, já não estava a achar graça à figurinha.

"Lembra-te que deves conhecer e validar os teus próprios sentimentos e desejos, mas os dos outros também."

Mau, pensei eu... mas valido-me a mim ou aos outros?! e eu que dormi mal?...

"Bem, calma... tu já aprendeste a controlar os teus impulsos, já é um princípio."

Olha-me esta...! pensei, projetei o pensamento na chávena à minha frente...

"Setembro chegou, sabes!? Tens que aprender a desfocar-te de ti própria quando os teus desejos não forem satisfeitos. Também não tens que te desculpar disto ou daquilo. Experimenta, durante uns tempos, a passar tempo de solitude. Um tempo em que entendes o simbolismo da alma, sem que leves as mensagens no sentido demasiadamente literal."

"Sentires-te apreendida não é agradável, eu sei... mas também nem tu queres saber se qualquer coisa exista é do teu agrado...Ora....! Se fores espertinha, podes crescer com este pensamento, ou podes-te perder por não virares costas à arrogância.
Sentes-te desafiada a exteriorizar o teu génio interior (sorriso matreiro no rosto... detesto quando ela me sorri assim... também agora ja despertei! Que raiva!), vá... já que não te descentras, tenta dissecar-te, mas com jeitinho, e amor.... Há muitas formas de te relacionares com o "outro". Prestar atenção é vital... que se não te conectas a ti, não te conectas a mais ninguém."

Mas alguém lhe incumbiu de me fazer um sermão? Penso eu ja fora de mim! O malvado relógio da parede ficou sem pilhas durante as ferias e eu já....! Ai meu Deus, já são 9 horas! Projeto-me da mesa para ir a correr para o quarto, conseguindo apenas estatelar-me no chão... envergonhada e sozinha levanto-me enquanto ela me diz:

"Eu não te avisei para te conectares? agora não adianta teres pena de ti própria! Responder aos problemas com raiva ou pena não te vai ajudar! Conecta-te! Sacode o pó e eu penso logo, sim... sacudo o pó, lavo a cara, visto a roupa, pseudo-penteio-me, limpo o café do chão...! que mais?! que mais!?...ah! a mascara!) -e vai trabalhar!"

E eu vim... na esperança de que se não falasse no assunto, talvez eu neutralizasse o poder da coisa.

Mas não, quando o dia começa assim, há sempre qualquer coisa mais ao virar da esquina.

E estava. O chefe. Eram 10 horas e batemos de frente!

Ventos Sábios - Ruth Collaço® (irritada com a Voz)

Ruth Collaço -  a autora deste texto.