Luísa levantou-se, mais cedo que o sol. Os mistérios da serra ainda dormiam nas camas de pedra envelhecida pelo tempo.
Luísa olhou para o açafate que estava na mesa coberto com um paninho de linho e cortou um pedaço de broa com as próprias mãos.
Num gesto que fazia parte do ritual dos seus dias, meteu a broa no bolso do avental de chita e saiu porta fora. Em poucos segundos, abriu o ferrolho da porta do curral e o gado fez uma procissão à sua frente. Também ele conhecia o caminho de cor e nem precisava que a pastora o guiasse.
Pastora e animais ainda não tinham chegado ao nicho das alminhas, quando a saia comprida da Luísa ficou toda molhada. Água quente saiu-lhe das entranhas e o medo que sentiu naquele momento, paralisou-a.
Luísa encostou-se ao muro e curvou-se segurando a grande barriga.
As dores fortes vinham e iam tornando-se cada vez mais frequentes.
-Minha Mãe do Céu, o que está a acontecer comigo? Será que o meu filhinho vai nascer? - murmurava ela em surdina.
A viver sozinha, todos os dias pedia a Deus nas orações da manhã e da noite, que seu filho não nascesse, enquanto não soubesse novas do seu marido.
A última noite de amor, a noite da despedida feita em lençóis lavados de lágrimas, tinha deixado marcas no seu corpo. Marcas que com o passar dos meses, engravidavam cada vez mais e lhe faziam crescer as esperanças.
Luísa não tinha todo o tempo do mundo.
As forças começaram a faltar-lhe e já nem o rebanho conseguiu meter no curral.
Ao ver o cão no meio dos animais, entregou-os a Santo António e virou-lhe as costas.
Lentamente, dirigiu-se a casa da Tia Alzira, a vizinha de todas as horas.
-Tia Alzira, Tia Alzira, ajude-me!
Meu filho vai nascer!
Por favor, pela graça de Deus, vá ao povo chamar a Tia Lurdes!
Tia Alzira mandou Luísa para casa e com os tamancos na mão, correu até casa da mulher de virtudes.
-Tia Lurdes, Tia Lurdes, venha depressa, por favor! A pobre Luísa está prestes a parir! Venha, depressa!
Tia Lurdes abriu a porta e limpando o rosto ao avental, caminhou apressada ao lado da Tia Alzira.
Enquanto caminhavam, ia adiantando serviço, pois não havia tempo a perder.
-Olha Alzira, assim que chegarmos a casa da pequena, acendes o lume e pões uma panela cheia de água. Uma ou duas, se forem pequenas. Eu vou precisar de água fervida para lavar a criança e a mãe. Levo aqui esta tesoura com que vou cortar a tripa e tu vais desinfetá-la, por favor. Mete-la dentro da panela a ferver. Assim, tenho a certeza que estou a proteger a mãe e a criança de uma terrível doença.
Quando estavam próximas da casa de Luísa, os gritos que lhe saíam do peito, faziam chorar as pedras do caminho.
-Pobre rapariga!
Que a Mãe do Céu a ajude!
-Disse entre dentes a Tia Lurdes.
A porta estava aberta. Luísa estendia o corpo na cama ainda quente da noite. As mãos apertavam a barra de ferro.
Tia Lurdes abriu uma caixa de pinho e tirou um lençol de linho que cheirava a naftalina. Depois, pegou num cobertor da cama e estendeu-o no chão do quarto.
-Anda cá, minha filha!
Anda, sai da cama!
Põe-te de joelhos aqui, em cima do cobertor.
Um grito estridente, outro e mais outro... inchavam a barriga prestes a rebentar.
-Anda, minha filha, puxa!
Ajuda teu filho a vir ao mundo!
Tens que fazer muita força!
Anda, puxa, minha filha!
Luísa respirava ofegante. O suor molhava-lhe o rosto. As forças iam e vinham, tal como as dores. A parteira arregaçava as mangas. Pegou no lençol branco e fez um colo com ele. Depois...mais um grito, um grito prolongado e das entranhas do corpo sai uma cabecinha.
-Está a sair, minha filha, está a sair!
Puxa...punha...
Novo grito...
muita força..
e Tia Lurdes ampara no lençol de linho, agora vermelho de sangue, uma linda criança.
-É uma menina, Luísa, é uma menina.
Ó Alzira, traz depressa a tesoura!
Tia Lurdes enrola uma tripa no dedo, tira-lhe as medidas com os olhos e num corte certeiro, separa a filha da mãe. Depois, ata a envide com um fio de linho. Duas palmadas são dadas no rabinho da criança e o choro da vida traz a alegria e a luz à escuridão que há muito pintava o frio daquele lar. Embrulha o recém-nascido noutro lençol e cuida primeiro da mãe. A mãe que agora geme num turbilhão de sentimentos: felicidade, saudade e dor. Tia Alzira traz uma malga de canja de galinha. Luísa, com o suor a cair-lhe na malga, agradece o caldo. Enquanto come devagar, a tia Lurdes cuida do bebé.
Nova água na bacia.
O bebé está vestidinho com roupinha de cor azul.
Na cabecinha uma touquinha branca aconchega-o e de tão lindo que é, parece um anjo.
Depois... Luísa aperta a filha contra o peito, puxa a mama para fora da combinação, mete o bico naquela boquinha tão pequenina e ouve-se a sofreguidão da primeira mamada. O coração daquela mãe, é pequeno demais para albergar a imensidão daquele Amor Maior.
Os meses passaram.
A pequena Matilde vai entrar para a escola.
Tem os cabelos loiros aos caracóis. Os olhos azuis, iguais aos do pai.
O pai que sua mãe esperou, mas nunca mais voltou.
Luísa, todos os dias olha aquele penedo que tantos segredos guarda.
Celeste Almeida, a Autora do texto