Usava saia comprida e um saiote branco de linho cru. Às vezes vestia uns culotes estranhos que lhe davam pelo joelho. Tinha uma blusa de chita preta com bolinhas brancas pequeninas.
Os cabelos, grisalhos e rebeldes, escondiam-se desarrumados debaixo do lenço de flanela com motivos florais.
Andava, geralmente, descalça ou de tamancas rústicas.
Por cima da saia, colocava um avental de terylene com dois grandes bolsos, onde guardava o lenço de assoar e o terço que sempre trazia consigo. Também no bolso levava a côdea de pão de milho que lhe servia de merenda, quando pastoreava o rebanho pelos montes.
De salientar que a avó Miquelina só tinha duas mudas de roupa:
Uma que aguentava no corpo a semana inteira e outra para domingos e dias de festa.
Sua pele estava tostada pelo sol de verão, mas também pela agrestidade dos dias frios de inverno, quase sempre intensamente hostis.
No regresso da lavoura ou da guarda do rebanho, trazia sempre à cabeça um molho de lenha para queimar na lareira, ou de urgueira verde para as cabras roerem na loja. Às vezes, o feixe era de mato para estrumar as cortes ou o quinteiro.
Nunca regressava a casa sem carrego.
A avó Miquelina tinha cataratas nos olhos, mas ninguém sabia que eram cataratas. A ideia que se tinha de cataratas era que eram grandes quedas de água que existiam ao longo de alguns rios, como as do Niágara na América do Norte, ou as de Iguaçu na América do Sul. O que todos pensavam era que estaria a cegar por já ser velhinha. Andava, em muito, para lá dos oitenta.
As cataratas dos olhos são a perda de transparência da “lente natural do olho”, também designada “Cristalino”, que se torna opaca, dificultando a passagem da luz.
Não me lembro se a avó alguma vez foi assistida por um médico. Era difícil chegar a médicos naqueles tempos, pior ainda da especialidade. Por causa de ter os olhos assim… enevoados, houve um dia em que a encarei de frente e lhe disse em tom depreciativo:
“Você tem olhos de gato!”.
Ela focou-me com a pouca capacidade de visão que ainda possuía e sorriu palidamente.
A avó Miquelina tinha um semblante triste e rugas profundas a rasgar-lhe o olhar. No entanto, nunca ninguém lhe vira deixar cair uma lágrima.
Mãe solteira, vítima da fome e da pobreza, via em seu único filho o sol dos dias e, até, a magia do luar que a deslumbrava nas noites mais dolorosas e frias.
Deixara-se seduzir por um imbecil, um filho de rico que não prestava e com ele se deitara por um pedaço de pão.
Não!
A bem da verdade, a avó Miquelina apaixonara-se perdidamente por esse infame e sozinha se quedara de barriga cheia.
Seu filho nasceu e com amor e zelo o educou, e ensinou a ser um homem de respeito e com valores. Tirara muitas vezes o pão da boca para alimentar o seu rebento. Tanta fome passara para que a ele nada faltasse!
Era assim a avó Miquelina que, pelas agruras que a vida lhe infligira, forte e dura na queda se tornou.
Muito trabalhara nas terras que não herdou. Não possuía bens, apenas uma velha casa de granito. Mas era um teto. Tinha um teto. Que maravilha!
A avó Miquelina era analfabeta, aliás, como quase todas as mulheres da aldeia e, por isso, agia como via. Fazia xixi de pé. Depois, secava as partes baixas ao saiote e seguia caminho.
Costumava arreliar-se muito com as cabras e as ovelhas quando lhe fugiam para as lameiras dos outros. Nessas alturas não poupava os palavrões.
Certo dia, ao regressar do monte, surgira-lhe no caminho um jipe descapotável cheio de hippies – rapazes e raparigas ensandecidos que se amontoavam na viatura. Era tempo de libertação, de loucura e indecências, do vale tudo e mais alguma coisa. A “turma” de delinquentes, acampados no meio do monte, tentara roubar-lhe um cordeiro para matarem e fazerem uma festança, mas a avó Miquelina levantou o cajado e, furibunda, arreou nuns e noutros e obrigou-os a fugir com o rabo entre as pernas.
Também suas netas defendia com unhas e dentes. Ai de quem ousasse fazer-lhes mal! Apesar da aspereza, não deixava de ser um anjo da guarda, escondido nas sombras da “fachada” rude que quase sempre demonstrava. Se era revoltada, tinha suas razões. Vidas complexas num tempo de miséria e injustiças, de exploração e abusos, de faltas de respeito e consideração.
A avó Miquelina tinha “chouriças” nas pernas, umas manchas que ganhava na pele das canelas por permanecer muito tempo a aquecer-se ao lume na lareira de chão. A lareira era mais funda do que o soalho que servia de banco onde todos se sentavam na hora de cear, segurando na mão a malga de caldo, ainda a fumegar.
Recordo que, num dia de verão, em que se dava a azáfama das malhadas do centeio, enquanto o resto da família se entregava à tarefa de arrumar as sementes e a palha nos palheiros, eu e a avó Miquelina fomos com o gado para um lameiro que ficava junto ao rio que banha a povoação. Enquanto o rebanho pastava, a avó sentara-se a rezar o terço.
Eu, ainda muito pequena, com apenas sete anos demasiado irrequietos, decidi jogar-me aos rebolões na acentuada inclinação do terreno que abeirava a margem do rio.
A avó levantou o olhar e, aflita, desceu apressada para me travar.
Como já era velhinha e eu rodava rapidamente em direção ao precipício, valeu agarrar-me às ervas e conseguir estancar mesmo antes de cair nas águas fluviais, ou de bater em alguma fraga, cenário do qual possivelmente não sairia viva. Fiquei tão indisposta e assustada que passei o resto da tarde a chorar. A avó, que numa situação normal gritaria raios e coriscos, aconchegou-me no colo e disse simplesmente:
“Ao menino e ao borracho põe Deus a mão por baixo.” Sossega, pequenina! Está tudo bem, com a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Louvado seja Deus!”
E embalou-me no colo até que adormeci. A avó fora um anjo por não se zangar comigo. Creio, no entanto, que o medo que sentira fora de morte.
A avó Miquelina faleceu com oitenta e seis anos. Uma vida longa, de luta e sofrimento, mas também de muitas alegrias. Diz a velha máxima que
“Depois da tempestade vem a bonança”
e, essa, também a avó Miquelina alcançou.
Seu filho cresceu forte e sadio e logo que começou a trabalhar, a vida melhorou bastante e ela pôde ainda sentir o aroma da felicidade.
Dulci Ferreira, a autora do texto