02 May
02May

Abandonado nas memórias feridas, no peso dos segredos carcomidos, resiste ao tempo sem idade, um carro ensanguentado à espera de uma lareira acesa.

Esquecido num eido, pesa-lhe o jugo das vacas que o amordaçou nas correias. Foi corpo com vida, foi soldado em várias frentes. Hasteou carradas no bater dos fueiros e nos gemidos das rodas. 

Hoje, é um herói de nada, um pedaço de matéria morta sem condecorações, dissecado no desespero. 

Tio Amílcar, agricultor da aldeia de Courinha abençoada pelo Santo António, tinha nele a chave do seu trabalho. 

Sem filhos, desde cedo, fez o testamento sem lacra, do mais rico instrumento agrícola que possuía. 

Ter um carro de madeira de carvalho, não era "luxo" para todos!  

Não podia partir para o outro mundo sem saber que o ia deixar em boas mãos. 

Decidiu, numa tarde, em que lavrava a terra das batatas quem seriam os legatários da sua fortuna. 

António e José seriam os seus herdeiros.  

Assinaram a sua última vontade com palavras ensalivadas redigidas nos céus das três bocas.  

Chegou o dia do adeus.  

Tio Amílcar partiu para o outro mundo vítima de um ataque cardíaco.  

Ainda o corpo não tinha arrefecido na terra e já as desavenças entre os dois se faziam ouvir na cova. 

-Olha, António, eu tenho uma solução para pormos fim às nossas zangas! 

O Tio Amílcar, decerto, que já deu mil voltas na sepultura, com nossas quezílias. Temos que deixar o homem descansar, pois nem a terra o come, vendo-nos assim.

-Eu, também, acho! Mas, o que se pode fazer, se tu queres ser o único a servir-te do carro, que ele deixou para ambos? 

-Eu compro-to. Dou-te trezentos escudos por ele, e podes crer que é bem pago. Ainda te faço mais! De lés a lés, empresto-to, para teus trabalhos mais pesados.

António, que já vivia desgostoso, aceitou a proposta do amigo. O dinheiro também lhe fazia jeito pois precisava de comprar umas cabras ao vizinho e ainda ficaria com alguns trocados na algibeira. 

Os espinhos da demora cravavam-se na cabeça dia após dia, pois a cor do dinheiro não era vista. Os pedidos constantes do pagamento eram o azedume da relação que se tornou cada vez mais amarga. 

José acabou por falecer, sem nunca ter saldado os trezentos escudos que lhe devia. Se pobre vivia, pobre continuou a viver, perdoando quem já se tinha ido. 

Numa noite de tempestade, o Tio Jacinto rezava à Santa Bárbara, deitado no seu colchão de palha. Viúvo, com os filhos no estrangeiro, arrecadava os tostões que estes, de vez em quando, lhe enviavam aconchegados em breves palavras. 

Não sabia ao certo, qual o valor que tinha num buraco da parede, mas, olhando aos anos que não via os filhos, talvez fosse o preço de uma vaca, ou duas. 

Nessa noite, os trovões faziam tremer o colmo do telhado, os relâmpagos iluminavam o negrume das paredes, e a chuva caía para um balde de esmalte posto no chão do quarto. 

Os pratos e as malgas caiam sem ficarem em cacos.  

Os copos e as jarras tombavam sem estilhaçar.  

As portas abriam e fechavam sem existirem. 

As campainhas das vacas chocalhavam sem as ter...enfim, sons incompreendidos ruíam na solidão das trevas.  

Tio Jacinto, homem temente a Deus, mas, mais ainda ao Demo, apertou um crucifixo de madeira e disse: 

-Quem anda aí?  

O que queres da minha alma?  

Sai da minha pobre casa e vai atentar a tua família, seu demónio!  

Uma voz trémula e rouca fez-se ouvir, vindo de um corpo sem corpo.  

-Eu sou o teu compadre José. Venho pedir-te que me cumpras uma promessa. Vai a casa do António e dá-lhe trezentos escudos que eu lhe fiquei a dever. Nunca lhe paguei o carro que o Tio Amílcar deixou para ambos. 

-Vai pedir aos teus, alma do diabo! Eu não tenho essa quantia. 

-Eu já tentei, mas eles não têm a morada aberta como tu e não consigo entrar neles. Tens que ser tu, compadre, a fazer-me esse favor. Caso o não faças eu nunca terei sossego, pois as portas do purgatório não se abrirão para mim, mas tu, cá na terra, não o terás também. 

-Continuou a fazer-se ouvir aquela voz vinda de um ser invisível. 

-Vai-te embora.  

Some daqui.  

Vai-te, alma penada.  

Eu amanhã, irei levar o dinheiro ao José.  

Agora, deixa-me na paz do Altíssimo e nunca mais me apareças. Renego-te, se aqui voltares. 

Logo ao amanhecer, o bom homem foi ao buraco da parede e retirou todo o dinheiro que lá tinha. Dirigiu-se a casa do José e entregou-lho dizendo: 

-Toma, é teu. Muito ou pouco, é tudo que tenho. Entrego-te todo o amor dos meus filhos. Fica com ele. Que te faça bom proveito.  

Com a cabeça baixa, lavando o chão com as lágrimas, regressou a casa. Sentou-se, debruçou-se em cima de uma mesa com uma toalha cheia de caruncho, segurou o peso do corpo com as mãos geladas e deixou-se cair. 

Nunca mais se levantou.  

Foi erguido em braços dentro de um caixão para a sua derradeira morada.  

A ele, as portas do céu abriram-se de par em par e S. Pedro encaminhou-o para a eternidade.  

Lá, vive com Deus e com os Anjos, talvez, olhando das alturas, aquele carro que tanto mal causou e continua à espera de uma lareira acesa, para se tornar pó.

Celeste Almeida, a autora do texto

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